sábado, 30 de junho de 2012

Mitos cosmogônicos na visão dum cientista

“[...] esses mitos encerram todas as respostas lógicas que podem ser dadas à questão da origem do Universo, incluindo as que encontramos em teorias cosmológicas modernas. Com isso não estou absolutamente dizendo que a ciência moderna está meramente redescobrindo a antiga sabedoria, mas que, quando nos deparamos com a questão da origem de todas as coisas, podemos discernir uma clara universalidade do pensamento humano. A linguagem é diferente, os símbolos são diferentes, mas, na sua essência, as ideias são as mesmas.

[…]

Uma vez que nos perguntamos sobre a origem do Universo, encontrar uma resposta se torna muito tentador. O caminho que cada indivíduo escolhe depende, sem dúvida, de quem está fazendo a pergunta. Uma pessoa religiosa vai procurar respostas dentro do contexto de alguma religião, que poderá ser tanto uma religião organizada como uma versão mais pessoal. O ateu tentará, talvez, achar uma resposta dentro de um contexto científico. Religiosas ou não, certamente a maioria das pessoas terá uma resposta. O veículo encontrado por várias culturas foi o mito. Mitos são histórias que procuram viabilizar ou reafirmar sistemas de valores, que não só dão sentido à nossa existência como também servem de instrumento no estudo de uma determinada cultura.
[…]
Esses exemplos mostram que o poder de um mito não está em ele ser falso ou verdadeiro, mas em ser efetivo. Isso não pode ser mais verdade do que quando nos deparamos com os mitos de Criação (ou cosmogônicos – do grego kosmogonos), que abordam o problema da origem do Universo. É claro que, quando diferentes culturas tentam formular uma explicação para a origem de “tudo”, elas têm de usar uma linguagem essencialmente metafórica, baseada em símbolos que têm significado dentro da cultura geradora do mito. Metáforas também são comuns em ciência, especialmente a ciência que explora fenômenos alheios à nossa percepção sensorial, como por exemplo no mundo do muito pequeno e do muito rápido, o domínio da física atômica e subatômica.

Isso explica por que mitos de determinadas culturas podem parecer completamente sem sentido em outras. De fato, um erro bastante comum é usarmos valores ou símbolos da nossa cultura na interpretação de mitos de outras culturas. Outro erro grave é interpretar um mito cientificamente, ou tentar prover mitos com um conteúdo científico. Os mitos têm que ser entendidos dentro do contexto cultural do qual fazem parte. […]

Devido ao seu profundo significado, os mitos de criação nos fornecem um retrato fundamental de como determinada cultura percebe e organiza a realidade à sua volta. [...]” (GLEISER, Marcelo. A dança do Universo: dos mitos de criação ao Big-Bang. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 14-15, 19-21.)

terça-feira, 5 de junho de 2012

O que é a Bíblia?

“[...] Como todos os outros livros escritos, incluindo outros livros sacros, a Bíblia é em primeiro lugar (independentemente do valor que a atribuamos) um artefato humano, com uma história humana. É o produto de muitas diferentes mentes humanas de variadas habilidades, escrita por mãos humanas de variados poderes de coordenação, copiada e recopiada por escribas de inteligências variadas, impressa e encadernada por artesãos de diferentes padrões de destreza, lida e interpretada por judeus e cristãos, agnósticos e ateus, de diferentes abordagens hermenêuticas. É também um livro de origens e conteúdos muitíssimo variados. É uma antologia contendo antigas leis judaicas, lendas, mitos, hinos, canções, poemas de amor, provérbios, profecias, relatos, biografias, histórias, cartas, visões, ponderações filosóficas etc, escrita em períodos diferentes entre, digamos, o século VIII a.E.C. e o início do segundo século desta era. Seus muitos autores escreveram para atender as necessidades de seu próprio tempo, e não do nosso. Os historiadores dentre eles escreveram história como eles a viram, e apresentaram o passado de Israel em termos designados para atender as necessidades de sua própria agenda política ou religiosa, e não nossa agenda. A inspiração divina pode tê-los levado a escrever melhor do que eles sabiam, mas, no entanto, eles escreviam como seres humanos em favor de sua própria situação humana, e não poderiam saber que uso gerações posteriores fariam de suas obras ou que interpretações lhes atribuiriam. E sua obra é, em si mesma, parte da história, e os livros históricos da Bíblia são parte da historiografia antiga, devendo ser lidos e estudados juntamente com outros escritos antigos e outras evidências do passado. [...]” (BARTLETT, John R. What has archaeology to do with the Bible – or vice versa?. In: _________ (Ed.). Archaeology and Biblical Interpretation. Nova York, EUA: Routledge, 1997. p. 1.)




“Para pessoas modernas, intimamente familiarizadas com algumas das mais destacadas religiões ocidentais (o judaísmo, o cristianismo, o islamismo), pode ser difícil imaginar, mas os livros não representavam virtualmente nenhum papel nas religiões politeístas do antigo mundo ocidental. Essas religiões dedicavam-se quase exclusivamente a honrar os deuses por meio de atos rituais de sacrifício. Não havia doutrinas a aprender, explicadas em livros, e praticamente não havia princípios éticos a ser seguidos registrados em livros. Isso não significa que os adeptos das várias religiões politeístas não tivessem crenças em seus deuses ou não tivessem ética, mas crenças e éticas – por mais que isso soe estranho a ouvidos modernos – não desempenhavam papel algum na religião propriamente dita. Tratava-se de um domínio da filosofia pessoal, e as filosofias, claro, podiam estar nos livros. Visto que as próprias religiões antigas não exigiam conjuntos particulares de “retas doutrinas” ou, em sua maneira, de “códigos éticos”, os livros não desempenhavam função de destaque em seu meio.

Só o judaísmo insistia em leis, costumes e tradições ancestrais – e defendia que eles fossem registrados em livros sagrados, que gozavam, portanto, do status de “escritura” para o povo judeu. Durante o período que estamos estudando – o século I da era comum, quando os livros do Novo Testamento estavam sendo escritos –, judeus dispersos pelo Império Romano entendiam particularmente que Deus dera direção a seu povo nos escritos de Moisés, coletivamente chamados de Torah, termo que significa literalmente algo como “lei” ou “orientação”. A Torah consiste em cinco livros, algumas vezes chamados de Pentateuco (os “cinco rolos”), o início da Bíblia judaica (o Antigo Testamento cristão): Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Ali se encontram os relatos da criação do mundo, do chamado a Israel para ser o povo de Deus, as histórias dos patriarcas e das matriarcas de Israel, o envolvimento de Deus com eles e, o mais importante (e mais extenso): as leis que Deus entregou a Moisés para indicar como seu povo devia adorá-lo e se comportar um com o outro e em comunidade. Eram as leis sagradas, que deviam ser aprendidas, discutidas e seguidas – e que, para isso, foram escritas em um conjunto de livros.

Os judeus tinham outros livros, que eram também muito importantes para sua vida religiosa, como por exemplo os livros dos profetas (como Isaías, Jeremias e Amós), os poéticos (Salmos) e os históricos (como Josué e Samuel). Por fim, algum tempo depois do início do cristianismo, uma série desses livros hebraicos – vinte e dois deles – passou a ser considerada cânon sagrado das Escrituras, a Bíblia judaica atual, aceita pelos cristãos como a primeira parte do cânon cristão, o Antigo Testamento.

Esses breves fatos sobre os judeus e seus textos escritos são importantes porque definem o cenário para o cristianismo, que é também, desde seus inícios, uma religião “do livro”. O cristianismo naturalmente começou com Jesus, que era um rabi (mestre) judeu que aceitava a autoridade da Torah e, possivelmente, outros livros sagrados judaicos, e que ensinava a própria interpretação desses livros aos seus discípulos. Assim como outros rabis de seu tempo, Jesus afirmava que Deus poderia ser encontrado nos textos sagrados, especialmente na Lei de Moisés. Ele lia as Escrituras, estudava-as, interpretava-as, era adepto delas e as ensinava. Seus seguidores eram, desde o início, judeus que tinham os livros de sua própria tradição em alta conta. Por isso, já desde os primeiros tempos do cristianismo, os adeptos dessa nova religião, os seguidores de Jesus, eram em tudo diferentes no Império Romano: à semelhança dos judeus antes deles, mas diferentemente de quase todos os demais, situavam a autoridade sagrada nos livros sagrados. Assim, desde o seu início, o cristianismo foi uma religião do livro.” (EHRMAN, Bart D. O que Jesus disse? O que Jesus não disse?: quem mudou a Bíblia e por quê?. Tradução Marcos Marcionilo. São Paulo: Prestígio, 2006. p. 28-30.)

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Como se gera uma criança?






[NOTA: Não acrescentarei nenhum comentário a esses textos (assim como todos os outros publicados aqui), sua discussão será feita durante nossos encontros.]

“[...] A jovem conceberá e dará à luz um filho, e o chamará pelo nome de Emanuel.”
Isaías 7:14

“Livro da origem de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão. […] Jacó foi o pai de José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que é chamado o Messias. […] A origem de Jesus, o Messias, foi assim: Maria, sua mãe, estava prometida em casamento a José, e, antes de viverem juntos, ela ficou grávida pela ação do Espírito Santo. José, seu marido, era justo. Não queria denunciar Maria, e pensava em deixá-la, sem ninguém saber. […] Tudo isso aconteceu para se cumprir o que o Senhor havia dito pelo profeta: Vejam, a virgem conceberá e dará à luz um filho […]”
Mateus 1:1, 16, 18-19, 25

“Todos aprovavam Jesus, admirados com as palavras cheias de encanto que saíam da sua boca. E diziam: este não é o filho de José?”
Lucas 4:22


“Filipe se encontrou com Natanael e disse: Encontramos aquele de quem Moisés escreveu na Lei e também os profetas: é Jesus de Nazaré, o filho de José.”
João 1:45

“[...] Esse Jesus não é o filho de José? Nós conhecemos o pai e mãe dele. Como é que ele diz que desceu do céu?”
João 6:42

BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada: Edição Pastoral. São Paulo: Paulus, 1990.

Os relatos da Criação no Gênesis (cap. 1 - 3)





[NOTA: Estes seguintes capítulos do livro de Gênesis são essenciais para nossas discussões em sala. É importante que os participantes se familiarizem com eles. Não acrescentarei nenhum comentário a esses textos (assim como todos os outros publicados aqui), sua discussão será feita durante nossos encontros.]

Capítulo 1

1. No princípio, Deus criou o céu e a terra.
2. Ora, a terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo, e um vento de Deus pairava sobre as águas.
3. Deus disse: "Haja luz" e houve luz.
4. Deus viu que a luz era boa, e Deus separou a luz e as trevas.
5. Deus chamou à luz "dia" e às trevas "noite". Houve uma tarde e uma manhã: primeiro dia.
6. Deus disse: "Haja um firmamento no meio das águas e que ele separe as águas das águas", e assim se fez.
7. Deus fez o firmamento, que separou as águas que estão sob o firmamento das águas que estão acima do firmamento,
8. e Deus chamou ao firmamento "céu". Houve uma tarde e uma manhã: segundo dia.
9. Deus disse: "Que as águas que estão sob o céu se reúnam numa só massa e que apareça o continente" e assim se fez.
10. Deus chamou ao continente "terra" e à massa das águas "mares", e Deus viu que isso era bom.
11. Deus disse: "Que a terra verdeje de verdura: ervas que deem semente e árvores frutíferas que deem sobre a terra, segundo sua espécie, frutos contendo sua semente" e assim se fez.
12. A terra produziu verdura: ervas que dão semente segundo sua espécie, árvores que dão, segundo sua espécie, frutos contendo sua semente, e Deus viu que isso era bom.
13. Houve uma tarde e uma manhã: terceiro dia.
14. Deus disse: "Que haja luzeiros no firmamento do céu para separar o dia e a noite; que eles sirvam de sinais, tanto para as festas quanto para os dias e os anos;
15. que sejam luzeiros no firmamento do céu para iluminar a terra" e assim se fez.
16. Deus fez os dois luzeiros maiores: o grande luzeiro para governar o dia e o pequeno luzeiro para governar a noite, e as estrelas.
17. Deus os colocou no firmamento do céu para iluminar a terra,
18. para governarem o dia e a noite, para separarem a luz e as trevas, e Deus viu que isso era bom.
19. Houve uma tarde e uma manhã: quarto dia.
20. Deus disse: "Fervilhem as águas um fervilhar de seres vivos e que as aves voem acima da terra, sob o firmamento do céu" e assim se fez.
21. Deus criou as grandes serpentes do mar e todos os seres vivos que rastejam e que fervilham nas águas segundo sua espécie, e as aves aladas segundo sua espécie, e Deus viu que isso era bom.
22. Deus os abençoou e disse: "Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a água dos mares, e que as aves se multipliquem sobre a terra."
23. Houve uma tarde e uma manhã: quinto dia.
24. Deus disse: "Que a terra produza seres vivos segundo sua espécie: animais domésticos, répteis e feras segundo sua espécie" e assim se fez.
25. Deus fez as feras segundo sua espécie, os animais domésticos segundo sua espécie e todos os répteis do solo segundo sua espécie, e Deus viu que isso era bom.
26. Deus disse: "Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança, e que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra".
27. Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou.
28. Deus os abençoou e lhes disse: "Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que rastejam sobre a terra."
29. Deus disse: "Eu vos dou todas as ervas que dão semente, que estão sobre toda a superfície da terra, e todas as árvores que dão frutos que dão semente: isso será vosso alimento.
30. A todas as feras, a todas as aves do céu, a tudo o que rasteja sobre a terra e que é animado de vida, eu dou como alimento toda a verdura das plantas" e assim se fez.
31. Deus viu tudo o que tinha feito: e era muito bom. Houve uma tarde e uma manhã: sexto dia.

Capítulo 2

1. Assim foram concluídos o céu e a terra, com todo o seu exército.
2. Deus concluiu no sétimo dia a obra que fizera e no sétimo dia descansou, depois de toda a obra que fizera.
3. Deus abençoou o sétimo dia e o santificou, pois nele descansou depois de toda a sua obra de criação.
4. Essa é a história do céu e da terra, quando foram criados. No tempo em que Iahweh Deus fez a terra e o céu,
5. não havia ainda nenhum arbusto dos campos sobre a terra e nenhuma erva dos campos tinha ainda crescido, porque Iahweh Deus não tinha feito chover sobre a terra e não havia homem para cultivar o solo.
6. Entretanto, um manancial subia da terra e regava toda a superfície do solo.
7. Então Iahweh Deus modelou o homem com a argila do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente.
8. Iahweh Deus plantou um jardim em Éden, no oriente, e aí colocou o homem que modelara.
9. Iahweh Deus fez crescer do solo toda espécie de árvores formosas de ver e boas de comer, e a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore do conhecimento do bem e do mal.
10. Um rio saía de Éden para regar o jardim e de lá se dividia formando quatro braços.
11. O primeiro chama-se Fison; rodeia toda a terra de Hévila, onde há ouro; 
12. é puro o ouro dessa terra na qual se encontram o bdélio e a pedra de ônix.
13. O segundo rio chama-se Geon: rodeia toda a terra de Cuch.
14. O terceiro rio se chama Tigre: corre pelo oriente da Assíria. O quarto rio é o Eufrates.
15. Iahweh Deus tomou o homem e o colocou no jardim de Éden pára o cultivar e o guardar.
16. E Iahweh Deus deu ao homem este mandamento: "Podes comer de todas as árvores do jardim.
17. Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que dela comeres terás que morrer.
18. Iahweh Deus disse: "Não é bom que o homem esteja só. Vou fazer uma auxiliar que lhe corresponda."
19. Iahweh Deus modelou então, do solo, todas as feras selvagens e todas as aves do céu e as conduziu ao homem para ver como ele as chamaria: cada qual devia levar o nome que o homem lhe desse.
20. O homem deu nomes a todos os animais, às aves do céu e a todas as feras selvagens, mas, para o homem, não encontrou a auxiliar que lhe correspondesse.
21. Então Iahweh Deus fez cair um torpor sobre o homem, e ele dormiu. Tomou uma de suas costelas e fez crescer carne em seu lugar.
22. Depois, da costela que tirara do homem, Iahweh Deus modelou uma mulher e a trouxe ao homem.
23. Então o homem exclamou: "Esta, sim, é osso de meus ossos e carne de minha carne! Ela será chamada 'mulher', porque foi tirada do homem!"
24. Por isso um homem deixa seu pai e sua mãe, se une à sua mulher, e eles se tornam uma só carne.
25. Ora, os dois estavam nus, o homem e sua mulher, e não se envergonhavam.

Capítulo 3

1. A serpente era o mais astuto de todos os animais dos campos, que Iahweh Deus tinha feito. Ela disse à mulher: "Então Deus disse: Vós não podeis comer de todas as árvores do jardim?"
2. A mulher respondeu à serpente: "Nós podemos comer do fruto das árvores do jardim.
3. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: Dele não comereis, nele não tocareis, sob pena de morte."
4. A serpente disse então à mulher: "Não, não morrereis!
5. Mas Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal."
6. A mulher viu que a árvore era boa ao apetite e formosa à vista, e que essa árvore era desejável para adquirir discernimento. Tomou-lhe do fruto e comeu. Deu-o também a seu marido, que com ela estava e ele comeu.
7. Então abriram-se os olhos dos dois e perceberam que estavam nus; entrelaçaram folhas de figueira e se cingiram.
8. Eles ouviram o passo de Iahweh Deus que passeava no jardim à brisa do dia e o homem e sua mulher se esconderam da presença de Iahweh Deus, entre as árvores do jardim.
9. Iahweh Deus chamou o homem: "Onde estás?", disse ele.
10. "Ouvi teu passo no jardim," respondeu o homem; "tive medo porque estou nu, e me escondi."
11. Ele retomou: "E quem te fez saber que estavas nu? Comeste, então, da árvore que te proibi de comer!"
12. O homem respondeu: "A mulher que puseste junto de mim me deu da árvore, e eu comi!"
13. Iahweh Deus disse à mulher: "Que fizeste?" E a mulher respondeu: "A serpente me seduziu e eu comi."
14. Então Iahweh Deus disse à serpente: "Porque fizeste isso és maldita entre todos os animais domésticos e todas as feras selvagens. Caminharás sobre teu ventre e comerás poeira todos os dias de tua vida.
15. Porei hostilidade entre ti e a mulher, entre tua linhagem e a linhagem dela. Ela te esmagará a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar."
16. À mulher ele disse: "Multiplicarei as dores de tuas gravidezes, na dor darás à luz filhos. Teu desejo te impelirá ao teu marido e ele te dominará."
17. Ao homem, ele disse: "Porque escutaste a voz de tua mulher e comeste da árvore que eu te proibira, comer, maldito é o solo por causa de ti! Com sofrimentos dele te nutrirás todos os dias de tua vida.
18. Ele produzirá para ti espinhos e cardos, e comerás a erva dos campos.
19. Com o suor de teu rosto comerás teu pão até que retornes ao solo, pois dele foste tirado. Pois tu és pó e ao pó tornarás."
20. O homem chamou sua mulher "Eva", por ser a mãe de todos os viventes.
21. Iahweh Deus fez para o homem e sua mulher túnicas de pele, e os vestiu.
22. Depois disse Iahweh Deus: "Se o homem já é como um de nós, versado no bem e no mal," que agora ele não estenda a mão e colha também da árvore da vida, e coma e viva para sempre!"
23. E Iahweh Deus o expulsou do jardim de Éden para cultivar o solo de onde fora tirado.
24. Ele baniu o homem e colocou, diante do jardim de Éden, os querubins e a chama da espada fulgurante para guardar o caminho da árvore da vida.



BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém: Revisada. São Paulo: Paulus, 2002.

sábado, 2 de junho de 2012

Para pensar o fazer historiográfico


[NOTA: Não acrescentarei nenhum comentário a esses textos (assim como todos os outros publicados aqui), sua discussão será feita durante nossos encontros.] 

“[...] O historiador não é um cientista num laboratório, onde agentes e catalisadores podem ser isolados e testados em experiências controladas, e sim um artista que enfrenta um mundo confuso, um imenso panorama de contingências.[...]” (COLLINSON, Patrick. A Reforma. Tradução S. Duarte. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006. p.229.)



História é algo bem distinto de fatos. Os historiadores não perguntam apenas “O que aconteceu?”, mas também “Por quê?”, “Como?” e “Quais foram as consequências?” Usam, então, as respostas a estas e a outras questões para criar os elos de cadeias de eventos, formando uma narrativa contínua. É a partir dessas perguntas e das conclusões a que os historiadores chegam que o passado se torna, para a maioria de nós, um campo muito mais compreensível.” (PARKER, Philip. Guia ilustrado Zahar: História Mundial. Tradução Maria Alice Máximo. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. p. 14.)



O processo histórico nos ajuda a ver que os eventos da história não ocorrem isoladamente. Nem a fé cristã se desenvolveu isoladamente. Em vez disso, a história ocorre no contexto da cultura. Os sociólogos dizem que uma cultura é a forma de vida característica de um grupo. Uma cultura inclui as criações físicas de um povo e seus comportamentos e crenças aprendidos e compartilhados.
[…]
Os historiadores sabem que essa rede de padrões complexos e mutantes se estende para além do momento presente. Algo que acontece agora pode estar relacionado com eventos e mudanças no passado distante. Certas ligações entre esses eventos presentes e passados podem, então, ser estabelecidas. Pode-se até mesmo dizer que o presente “nasceu” do passado. Assim, os historiadores veem o processo histórico como uma rede inter-relacionada de pessoas, ideias, e instituições onde existem mudança e continuidade. É nessa rede dinâmica que os eventos da história ocorrem.” (PETERSON, R. Dean. A Concise History of Christianity. Belmont, EUA: Wadsworth, 1993. p. 3-4.)



“Por ser um produto humano, todo produto historiográfico baseia-se necessariamente em toda uma série de escolhas e decisões pessoais, que de alguma maneira são condicionadas (observe-se que evitamos a palavra determinação). Toca-se aqui uma problemática que, na terminologia habitual, é a do subjetivismo e da exigência e da possibilidade de uma historiografia objetiva. Essa terminologia – ainda que válida e inevitável in philosophicis – leva a muita confusão e mal-entendidos se utilizada fora do ambiente da discussão “técnica”.
[…] Com a expressão “objetivo” entenderemos aquilo que não depende (mais) de nossa escolha, ou melhor, criação: “definimos a 'realidade' uma característica própria daqueles fenômenos que reconhecemos como independentes de nossa vontade (ou seja, não podemos 'fazê-los desaparecer simplesmente desejando que desapareçam')”; in historicis seriam os fatos que aconteceram e que são lembrados, e, portanto, passíveis de constatação: em 818 morre Carlos Magno; em 1776, as Colônias britânicas na América do Norte declaram sua independência. Deve-se constatar que esses fatos objetivos são sempre mediados de uma forma subjetiva; somente pessoas – sujeitos – podem transmitir o conhecimento desses fatos, ainda que utilizem objetos para a comunicação desse conhecimento. Mas aqui subjetividade não significa “invenção”, “distorção”, “fantasia”, “emoção”. E tampouco um julgamento pessoal (“Carlos Magno era um grande homem”); mesmo sendo uma mediação subjetiva, por essa razão não é necessariamente uma invenção, ainda que se passe do constatável ao opinável. Poder-se-ia evitar a confusão a respeito da exigência de “objetividade” do historiador falando de sua honestidade como característica a ser constatada ou exigida: ele não deve esconder, ou pior, destruir os dados que não se enquadram em sua maneira de pensar, não deve inventar ou mudar os dados. Claramente, a honestidade por si só não basta, é preciso também a seriedade.” (CHAPPIN, Marcel. Introdução à História da Igreja. Tradução Pier Luigi Cabra. São Paulo: Loyola, 1999. p. 71-72.)



[...] Não é necessário que dois historiadores que abordem um mesmo assunto cheguem a resultados comuns – é indispensável que o diálogo objetivo, racional e documentado possa se dar entre os dois, de tal forma que ambos compreendam onde se separam, por que se separam e como chegaram a resultados diferentes. Se há resultados diferentes é porque houve problematização diferente, hipóteses diferentes, uso diferente da documentação, mesmo que tenha sido a mesma. Entretanto, se essa diferença pode ser comunicada, se é racional, torna-se conhecimento.[...] (REIS, José Carlos. História & Teoria: Historicismo, Modernidade, Temporalidade e Verdade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 87.)

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Problematizando o sentido do termo "Cristianismo"

[NOTA: Não acrescentarei nenhum comentário ao texto seguinte (assim como todos os outros publicados aqui), sua discussão será feita durante nossos encontros.]
 
“Talvez não seja supérfluo destacar também que doutrinas ou tendências que são designadas por nomes familiares terminados em -ismo ou -idade em geral não o são, embora ocasionalmente possam ser, unidades do tipo que o historiador de ideias procura discriminar. Pelo contrário, elas constituem comumente compostos aos quais seu método de análise precisa ser aplicado. Idealismo, romantismo, racionalismo, transcendentalismo, pragmatismo – todos esses termos problemáticos e normalmente obscurecedores do pensamento, que às vezes se desejaria ver expurgados do vocabulário do filósofo e do historiador, conjuntamente, são nomes de elementos complexos, e não de elementos simples – e de complexos em dois sentidos. Eles designam, via de regra, não uma doutrina, mas várias doutrinas distintas e frequentemente conflitantes, sustentadas por diferentes indivíduos ou grupos a cujos modos de pensar essas designações foram aplicadas, ou por esses próprios ou na terminologia tradicional dos historiadores. E cada uma dessas doutrinas, por sua vez, é suscetível de ser decomposta em elementos mais simples, frequentemente combinados de maneira muito estranha e derivados de uma variedade de motivos e influências históricas diferentes. O termo “Cristianismo”, por exemplo, não é o nome de nenhuma unidade simples do tipo pelo qual o historiador de ideias específicas procura. Com isso quero indicar não só o fato notório de que pessoas que igualmente professaram o Cristianismo e chamaram a si mesmas de cristãs mantiveram, no curso da história, toda a espécie de crenças distintas e conflitantes agrupadas sob esse nome, mas também que qualquer uma dessas pessoas e seitas mantiveram, via de regra, sob esse nome um conjunto de ideias muito variadas, cuja combinação dentro de um conglomerado que traz um único nome e que se supunha constituir uma unidade real foi em geral o resultado de processos históricos de um gênero altamente complicado e curioso. Evidentemente, é apropriado e necessário que os historiadores eclesiásticos escrevam livros sobre a história do Cristianismo; mas ao fazê-lo dessa maneira eles têm escrito sobre uma série de fatos que, tomados como um todo, não têm quase nada em comum, a não ser o nome; a parte do mundo em que ocorreram; a reverência a certas pessoas, cuja natureza e doutrina, entretanto, têm sido muito diversamente compreendidas, de modo que, aqui também, a unidade é em grande parte uma unidade de nome; e a identidade de uma parte de seus antecedentes históricos, de certas causas ou influências, as quais, combinadas diversamente com outras causas, fizeram cada um desses sistemas de crenças ser o que é. Em toda a série de credos e movimentos agrupados sob o mesmo nome, e em cada um deles separadamente, é necessário ir além da aparência superficial de unicidade e identidade, para quebrar a concha que mantém a massa unida, se quisermos ver as unidades reais, as ideias que operam efetivamente e que estão presentes em qualquer caso dado.” (LOVEJOY, Arthur O. A Grande Cadeia do Ser: Um Estudo da História de Uma Ideia. Tradução Aldo Fernando Barbieri. São Paulo: Palíndromo, 2005. p. 15-16.)


A diversidade pode ser facilmente explicada no aqui e agora em termos de distância geográfica, diferença cultural, e caminhos diferentes para o desenvolvimento social e econômico. Contudo, a perspectiva histórica oferece uma visão particularmente indispensável a toda essa variedade. Onde houver um desacordo moderno sobre uma questão de política, os antecedentes históricos dos argumentos apresentados podem esclarecer porquê as pessoas pensam como pensam. Algumas divisões na Igreja são meramente o legado de fraturas sobre o que pareciam, em épocas passadas, ser princípios absolutamente fundamentais, mas que não mais correspondem às preocupações modernas. Se se percebe a distância entre a presente era e aquelas nas quais as rupturas ocorreram, a reconciliação pode ser mais fácil de alcançar. Por outro lado, as atitudes de cristãos do passado para com alguns temas, ou mesmo sua completa falta de interesse por uma questão que agora pareça crucial, pode parecer tão estranho que as desacordos presentes sobre temas “modernos” sejam insignificantes. […] Aprende-se a perceber o próprio passado como se este fosse uma cultura estranha: mas não se pode descartá-lo como meramente um “outro”, pois é a fonte da experiência moderna, ao mesmo tempo em que é estranho a ela. O estudo histórico também pode proteger contra o abuso de a evidência textual ser retirada de seu contexto original, um vício teológico que afetou as igrejas no passado.

Entretanto, observar a história das igrejas também representa um desafio ao observador. Até mesmo um secular que não seja cristão pode desejar saber, como mera questão de compreensão analítica, qual desses múltiplos sistemas de crença representa o Cristianismo em sua forma mais típica e característica. Como definir o Cristianismo? Para o devoto, entretanto, a questão é ainda mais premente. Quão seguro pode se sentir o membro de uma comunidade distinta do movimento cristão de que tenha absorvido a essência do que seja a promessa do evangelho? Quão importante é ser um membro desta ou daquela tradição contínua, ou de qualquer outra? Se as divergências entre diferentes tradições cristãs derivam (como muitas delas) de divergências teológicas ou institucionais indiscutivelmente obsoletas, por que dar prioridade a uma tradição em detrimento de outra? Por que manter tantas tradições distintas existindo?” (CAMERON, Euan. Interpreting Christian History: The Challenge of the Churches' Past. Malden, EUA: Blackwell, 2005. p. 4.)